Se uma pessoa se guiar apenas pela grande quantidade de notícias publicadas sobre veículos elétricos e os fortes desenvolvimentos que este tipo de tecnologia tem tido, a conclusão é a de que os elétricos são o futuro. Se lhes somar ainda as notícias sobre as cidades e países que vão proibir a circulação de carros a gasóleo ou gasolina, a conclusão passa a ser óbvia: os motores a combustão estão mesmo em fim de vida, e vão dar lugar aos veículos elétricos. Mas a realidade é outra e se um motor a combustão pudesse falar provavelmente citaria Mark Twain: "As notícias sobre a minha morte são manifestamente exageradas".
Ainda não há certezas de que os motores elétricos são a melhor proposta. A curto e médio prazo têm de ultrapassar a limitação de autonomia, o fator preço (mais elevado face ao mesmo modelo a combustão) e também o seu valor no mercado de usados. A médio e longo prazo vão ter de garantir que produzir e conduzir um veículo elétrico é realmente mais benéfico para o ambiente do que um veículo híbrido, algo que ainda não se verifica.
Elétricos são apenas 2% do mercado mundial
Os números de vendas mostram que o veículo elétrico ainda circula por terra de ninguém: aparentemente muito desejados mas pouco comprados. Dos 84 milhões de veículos vendidos em todo o mundo em 2016, 2,3% eram elétricos.
Se quisermos analisar esta realidade à lupa, o exemplo do grupo Renault-Nissan serve perfeitamente. Os dois modelos mais vendidos em todo o mundo são destas duas marcas. A nível global, o Nissan Leaf é o campeão de vendas; na Europa (e também em Portugal) cabe ao Renault Zoe liderar o mercado. Face a 2015, este grupo (já incluindo a Mitsubishi, recém adquirida) registou um aumento de 8% nas vendas de veículos elétricos em 2016. O problema é que os veículos elétricos representam apenas 4,2% dos quase 10 milhões de veículos comercializados pela Nissan, Renault e Mitsubishi.
Quem vai ganhar a longa fase de transição da combustão para o elétrico é o meio-termo: os veículos híbridos, que trazem um motor a combustão e outro elétrico, muitos deles com a possibilidade de carregamento, os chamados Plug-in, resolvendo a questão da autonomia e baixando o consumo e as emissões. Apesar das dúvidas, o automóvel elétrico é apontado por muitos governos como a melhor solução para um futuro "limpo". A ideia é reduzir as emissões de gases, um dos principais objetivos de acordos mundiais como o de Quioto ou mais recentemente o Acordo de Paris.
Um contrassenso
Mas aqui reside um grande contrassenso pois, em geral, cerca de metade da energia elétrica é produzida com recurso à queima de petróleo, gás natural e carvão, ou seja, combustíveis fósseis. E quantos mais veículos carregarem as baterias maior será, claro, a emissão de gases para a atmosfera, anulando a tão propalada vantagem ambiental.
Na Semana da Mobilidade, em setembro, o Ministro do Ambiente, Matos Fernandes, reconhecia isso mesmo: "queremos chegar a 2020 com 60% da energia elétrica a ser produzida a partir de fontes renováveis e a eletrificação (da mobilidade) só pode avançar tendo por base essa realidade". E Portugal nem é dos piores casos pois a Alemanha só impôs chegar aos 60% em 2035, com mais de 50% da sua energia a ser produzida atualmente com recurso à queima de combustíveis fósseis.
Ou seja, os carros elétricos não poluem diretamente ao circular nas cidades, mas poluem indiretamente e com consequências globais devido às atuais formas de produzir a energia elétrica, necessária para fabricar e fazer andar estes veículos. Entidades, como por exemplo o Massachusetts Institute of Technology (MIT), afirmam mesmo que, nalguns casos, produzir um veículo elétrico é mais poluente do que produzir um de combustão interna.
Não será por acaso que o setor petrolífero se mostra relativamente sereno ante todo este processo de transição. As previsões indicam que nas próximas décadas o consumo de petróleo não irá baixar, prevendo-se até, segundo o chairman da Royal Dutch Shell, Ben van Beurden, que o pico de venda de petróleo se dê em 2030. Van Beurden, que admite que o seu próximo carro poderá ser um elétrico, lembra que a aviação, o transporte marítimo e o rodoviário pesado ainda vão consumir combustíveis durante muito tempo. Recorde- e ainda que há mais de três anos que o preço do barril de petróleo não ultrapassa os 60 dólares.
Indústria dividida
Da parte da indústria automóvel, só algumas das principais marcas têm propostas eletrificadas, na sua maior parte híbridas. Recentemente começaram a surgir anúncios de modelos totalmente elétricos, mas apenas para daqui a dois anos, havendo até uma marca, a Volvo, que já anunciou que a partir de 2020 só produz híbridos e elétricos. A Volkswagen, o maior fabricante europeu, também já prometeu lançar cerca de 50 modelos elétricos, com os quais espera vender entre 2 a 3 milhões de veículos até 2025.
Mas nem todos se mostram tão confiantes na solução elétrica. É o caso do segundo maior grupo da Europa, o grupo PSA (Peugeot, Citroën, DS e também Vauxhall/Opel) que, pelas dúvidas que levanta, aparenta querer ser a irredutível aldeia gaulesa no meio de tantos elétricos. O diretor-geral da PSA, Carlos Tavares, aborda esta transição para o elétrico sem papas na língua: "banir o motor a combustão e forçar o uso de motores elétricos vai colocar a indústria em risco". Além disso, "se os governos forçarem a transição para os elétricos então a responsabilidade científica dos eventuais prejuízos e danos para a saúde pública da opção elétrica ficará na mão dos políticos".
Este gestor português considera ainda que "decidiram matar os motores a gasolina e gasóleo sem terem uma alternativa viável", pois há um conjunto de questões em aberto: "como se vai reciclar as baterias no futuro?; há lítio disponível para produzir milhões de baterias?". Tavares denuncia ainda que o avanço tecnológico está inflacionado pelos incentivos fiscais, pois "de outra forma os elétricos seriam ainda menos viáveis e competitivos no mercado". Tavares, que há quatro anos transitou da Renaul-Nissan para a PSA, defende também os híbridos como melhor solução ambiental.
Política avança com proibição
Apesar de tudo, vários países e cidades estão a abrir caminho legal, fiscal e judicial para o veículo elétrico. França e Reino Unido já anunciaram o fim da combustão a partir de 2040, com a decisão britânica a ser forçada pelos tribunais, que exigem um plano de redução de emissões. A Alemanha está a tentar antecipar a data para 2030, mas a Associação Alemã da Indústria Automóvel já avisou que esta decisão coloca 600 mil empregos em risco. A Noruega é mais ambiciosa e pretende proibir os veículos a combustão a partir de 2025, ao passo que a Índia pretende fazer o mesmo a partir de 2030.
Há cidades que vão proibir os motores a diesel, casos de Paris, Londres, Madrid, México, Atenas, Munique, Estugarda, entre outras, sobretudo o diesel, nas suas artérias. A China, o maior mercado mundial de automóveis, também já anunciou que vai proibir os motores a combustão.